DIREITOS DAS PESSOAS EM CONTEXTO DE DOENÇA AVANÇADA E FIM DE VIDA
Nuno André Silva
Em 2018, e no contexto dos vários debates gerados na Assembleia da República em torno de propostas legislativas sobre o acesso à morte medicamente assistida, foi aprovada a Lei n.º 31/2018, de 18 de julho, sobre os direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida.
Apesar de não contemplar soluções muito distintas daquelas já em vigor no ordenamento jurídico, o diploma procurou defender, no essencial, o propósito humanista da prestação de cuidadosa de saúde, assente no valor máximo e fundamental da dignidade da pessoa humana. Em momentos difíceis como aqueles abrangidos neste âmbito, a preocupação do Legislador residiu, sobretudo, no reconhecimento do direito ao não sofrimento e do acesso a cuidados de saúde de qualidade, bem como, no envolvimento em todo o processo dos próprios utentes e das pessoas que os acompanham, em especial, dos seus familiares.
A Lei n.º 31/2018 consagra, deste modo, o direito das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida a não sofrerem de forma mantida, disruptiva e desproporcionada, sendo certo que, nos termos do seu artigo 2.º, considera-se que uma pessoa se encontra neste referido contexto quando padeça de doença grave, que ameace a vida, em fase avançada, incurável e irreversível, com prognóstico vital estimado de 6 a 12 meses.
Atendendo aos propósitos do regime, o diploma aborda um conjunto de regras sobre o exercício dos seguintes direitos: (i) direito à informação; (ii) direito à participação e decisão; (iii) direito de acesso a cuidados de saúde; (iv) direito ao não sofrimento e (v) direitos não clínicos.
No âmbito do direito à informação, a preocupação manifestada nas soluções adotadas é a de que o utente, na medida do que a sua situação clínica o permitir, esteja plenamente informado sobre o contexto em que se encontra. Nesta medida, os profissionais de saúde devem fornecer ao utente informação detalhada sobre a natureza da sua doença, sobre o prognóstico estimado, sobre os diferentes cenários clínicos e sobre tratamentos que se afigurem tecnicamente indicados e que estejam disponíveis.
Esta regra não constitui uma novidade no domínio dos direitos dos utentes de serviços de saúde, uma vez que o direito à informação constitui-se como um dos elementos essenciais na relação estabelecida entre profissionais de saúde e utentes e estava já previsto, quer nas alíneas d) e e) da Base 2 da Lei de Bases da Saúde (LBS), onde se refere que todas as pessoas têm direito a “receber informação sobre o tempo de resposta para os cuidados de saúde de que necessitem” e “a ser informadas de forma adequada, acessível, objetiva, completa e inteligível sobre a sua situação, o objetivo, a natureza, as alternativas possíveis, os benefícios e riscos das intervenções propostas e a evolução provável do seu estado de saúde em função do plano de cuidados a adotar”, quer também no artigo 7.º da Lei n.º 15/2014, de 21 de março, onde se afirma que “O utente dos serviços de saúde tem o direito a ser informado pelo prestador dos cuidados de saúde sobre a sua situação, as alternativas possíveis de tratamento e a evolução provável do seu estado.”.
Para garantir a participação efetiva dos utentes no contexto em análise, bem como, o seu direito à decisão, o artigo 3º da Lei n.º 31/2018 reafirma a necessidade de participarem no seu próprio plano terapêutico, explicitando as medidas que desejam receber, mediante consentimento informado, podendo também recusar tratamentos, sem prejuízo das competências técnicas dos profissionais de saúde. Também neste particular, as soluções vertidas na Lei n.º 31/2018 acompanham o que já estava previsto em vários outros diplomas: nos termos do artigo 3º da Lei n.º 15/2014, o consentimento ou a recusa da prestação dos cuidados de saúde devem ser declarados de forma livre e esclarecida e o utente pode, em qualquer momento da prestação dos cuidados de saúde, revogar o consentimento; atenta a alínea f) da Base 2 da LBS, o utente tem direito a decidir, livre e esclarecidamente, a todo o momento, sobre os cuidados de saúde que lhe são propostos; e conforme o artigo 5.º da Convenção sobre os Direitos Humanos e a Biomedicina (CDHB), qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efetuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido, sendo certo que, para este fim, a pessoa deve receber previamente a informação adequada quanto ao objetivo e à natureza da intervenção, bem como quanto às suas consequências e riscos.
Não obstante, atendendo às circunstâncias específicas destes utentes, e considerando o seu direito ao não sofrimento, à autonomia, à liberdade e autodeterminação, especificaram-se no diploma algumas dimensões concretas do direito de recusa: os utentes, desde que devidamente informados sobre as consequências previsíveis dessa opção pelo médico responsável e pela equipa multidisciplinar que os acompanham, têm direito a recusar suporte artificial de funções vitais e de recusar tratamentos não proporcionais nem adequados, que não visem exclusivamente a diminuição do sofrimento e a manutenção do conforto ou que prolonguem ou agravem esse sofrimento.
Soluções originais e específicas surgem, sobretudo, no âmbito do consentimento para a prestação de cuidados de saúde. Em Portugal, a regra nesta matéria é a da liberdade de forma – o consentimento e a recusa podem ser manifestados verbalmente ou por escrito, a não ser que a Lei exija o cumprimento de regras específicas. É que sucede, por exemplo, nos casos da interrupção voluntária da gravidez, da utilização de técnicas invasivas em grávidas e testes de biologia molecular para diagnóstico pré-natal, na esterilização voluntária ou na colheita e transplante de órgãos de dador vivo, entre outros casos, em que se exige que o consentimento seja prestado por escrito. O mesmo sucede no âmbito da Lei n.º 31/2018: no caso de intervenções de natureza mais invasiva ou que envolvam maior risco para o bem-estar dos doentes, o consentimento deve ser prestado por escrito, e, nos casos de intervenções que possam pôr em causa as suas vidas, esse consentimento, para além de observar a forma escrita, deve ser obrigatoriamente prestado perante duas testemunhas (cfr. artigo 5º, n.º 2).
Considerando a especial fragilidade em que estes utentes se encontram, o Legislador teve o cuidado de garantir, na medida do possível, o permanente acompanhamento dos mesmos pelas pessoas que lhes são mais próximas, para melhorar as suas condições de apoio e de conforto. Nos termos dos artigos 10º e 11º da Lei 31/2018, caso as pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida nisso consintam, podem ser assistidas pelos seus familiares ou cuidadores na tomada das decisões sobre o seu processo terapêutico, sendo certo que, quando não estiverem no pleno uso das suas faculdades mentais e não forem assistidas por terceiros, será ao médico responsável e à equipa de saúde que as acompanham, que compete tomar decisões clínicas, ouvida a família, no exclusivo e melhor interesse do doente e de acordo com a vontade conhecida do mesmo. Em caso de discordância insanável entre os doentes ou seus representantes legais e os profissionais de saúde quanto às medidas a aplicar, ou entre aqueles e as entidades prestadoras quanto aos cuidados de saúde prestados, é facultado aos doentes ou aos seus representantes legais o acesso aos conselhos de ética das entidades prestadoras de cuidados de saúde; quando essa assistência for prestada no domicílio ou em entidade que não disponha de conselho de ética, deverá ser facultado aos doentes ou aos seus representantes legais o acesso aos órgãos competentes em matéria de ética da Ordem dos Médicos, da Ordem dos Enfermeiros e da Ordem dos Psicólogos.
Ainda no campo do direito ao acompanhamento, importa também fazer referência à Lei n.º 15/2014, de 21 de março, que já consagrava o direito ao acompanhamento familiar a pessoas com doença incurável em estado avançado e em estado final de vida, em todos os estabelecimentos de saúde, de forma permanente e gratuito, por ascendente, descendente, cônjuge ou equiparado e, na ausência ou impedimento destes ou por sua vontade, de pessoa por si designada; nos casos em que a situação clínica não permita ao utente escolher livremente o acompanhante, os serviços devem promover o direito ao acompanhamento, podendo para esse efeito solicitar a demonstração do parentesco ou da relação com o utente invocados pelo acompanhante (cfr. artigo 20º)
No que respeita aos direitos de acesso a cuidados de saúde de qualidade, a Lei n.º 31/2018 reconhece aos utentes o direito a receberem tratamento rigoroso dos seus sintomas e, sendo necessário, a receber cuidados paliativos através do SNS, incluindo-se neste âmbito o apoio espiritual e o apoio religioso, caso o doente manifeste tal vontade, bem como o apoio estruturado à família, que se pode prolongar à fase do luto.
Quanto ao “direito ao não sofrimento”, a Lei apresenta várias regras (cfr. artigos 3º e 8º):
- Em casos de estado confusional agudo ou a agudização de um estado prévio, os utentes têm direito à contenção química dos mesmos através do uso dos fármacos apropriados, mediante prescrição médica;
- A contenção física com recurso a imobilização e restrição físicas reveste caráter excecional, não prolongado, e depende de prescrição médica e de decisão da equipa multidisciplinar;
- Os utentes têm direito a não serem alvo de distanásia, através de obstinação terapêutica e diagnóstica, designadamente, pela aplicação de medidas que prolonguem ou agravem de modo desproporcionado o seu sofrimento;
- Nos casos de prognóstico vital breve, estimado em semanas ou dias, em que os utentes apresentem sintomas de sofrimento não controlado, têm direito a receber sedação paliativa e monitorização clínica regular; às pessoas em situação de últimos dias de vida, será assegurado o direito à recusa alimentar ou à prestação de determinados cuidados de higiene pessoal
Por fim, o artigo 9º do diploma em análise elenca um conjunto de direitos apelidados de “não clínicos”, coligindo várias soluções que já estavam definidas noutros diplomas legais:
- Direito de realizar testamento vital e nomear procurador de cuidados de saúde;
- Direito a ser o único titular do direito à informação clínica;
- Direito a decidir sobre o destino do seu corpo e órgãos, depois da morte;
- Direito de designar familiar ou cuidador de referência;
- Direito a receber os apoios e prestações sociais devidas, a si ou à sua família, em função da situação de doença e de perda de autonomia.
No âmbito das suas atribuições e competência e, em especial, no que se refere à análise de reclamações de utentes sobre cuidados prestados em situação de fim de vida, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) tem tomado conhecimento dos principais constrangimentos identificados pelos utentes e pelos seus acompanhantes neste âmbito, a saber:
- Falta de informação sobre prognóstico e terapêutica;
- Falta de referenciação para apoio psicológico atempado;
- Demora na referenciação para cuidados paliativos;
- Evidência da não prestação de cuidados de saúde humanizados;
- Acompanhamento durante prestação de cuidados, em particular a ausência de informação.
Nessa sequência, a intervenção regulatória da ERS tem sido pautada, sobretudo, no sentido de determinar que os estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde possuem, e cumprem, procedimentos internos que garantam:
- A prestação de informação clara e adequada, a todo o momento, sobre a sua situação clínica e possíveis terapêuticas;
- A referenciação para apoio psicológico atempado e para cuidados paliativos;
- A envolvência do utente na prestação de cuidados de saúde (por exemplo, informando sobre os medicamentos que estão a administrar, de forma clara e adequada; esclarecendo, de forma cuidadosa, os procedimentos invasivos que serão realizados);
- A prestação de cuidados que dignifiquem a intimidade do utente;
- A Identificação de possíveis necessidades de formação e/ou de sensibilização no âmbito da humanização dos cuidados e comunicação com os utentes (através de supervisão da atuação, da realização de auditorias e/ ou da análise de eventuais reclamações relacionadas).
- A prestação de informação sobre a situação clínica e evolução do utente, a si e aos seus acompanhantes;
- A comunicação eficiente entre os serviços administrativos e a unidade de internamento, de forma a facilitar o acesso alargado a visitas sempre que necessário, garantindo que o circuito de visitas é adequado e humanizado à situação em causa (considerando a rede de apoio do utente).
Por fim, e ainda a este propósito, cumpre fazer referência ao Alerta de Supervisão da ERS n.º 3/2024[1], subordinado ao tema do direito ao acompanhamento e que reforça, neste campo particular, a necessidade dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde garantirem, em permanência, o exercício deste direito e, em situações verdadeiramente excecionais, em que ocorra a decisão de não acompanhamento dos utentes, de garantirem a existência de procedimentos internos aptos a assegurar que, durante a permanência nos estabelecimentos, estes utentes são devidamente monitorizados e acompanhados e que é prestada informação aos utentes e seus acompanhantes sobre os motivos que impedem a continuidade do acompanhamento.
[1] O qual poderá ser consultado em https://ers.pt/pt/atividade/supervisao/selecionar/alertas-de-supervisao/2024/alertas/alerta-de-supervis%C3%A3o-n-%C2%BA-3-2024/