Bárbara Soares, Departamento de Intervenção Administrativa e Sancionatória da ERS
A sociedade atual é uma sociedade de consumo, fomentada pelo acesso mais facilitado a bens e serviços, pela intensificação da produção de informação e, ainda, pela massificação dos meios de comunicação. Neste contexto, a publicidade tem ganhado um maior destaque ao longo das últimas décadas, revelando-se um instrumento incontornável ao serviço dos agentes e das diversas atividades económicas, mas também ao serviço dos direitos dos consumidores. É isso que justifica que o n.º 2 do artigo 60.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), dedicado precisamente aos “Direitos dos consumidores”, faça uma breve referência à publicidade, remetendo a respetiva disciplina jurídica para legislação ordinária.
Em cumprimento da predita disposição constitucional, em 1990, foi aprovado o Código da Publicidade (aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 330/1990, de 23 de outubro), que ainda hoje se mantém em vigor, apesar de ter já sofrido algumas alterações.
No preâmbulo do Código da Publicidade é expressamente referido o seguinte:
“A publicidade assume, nos dias de hoje [1990], uma importância e um alcance significativos, quer no domínio da actividade económica, quer como instrumento privilegiado do fomento da concorrência, sempre benéfica para as empresas e respectivos clientes. […]
Em obediência a esse desiderato, a actividade publicitária não pode nem deve ser vista, numa sociedade moderna e desenvolvida, como um mal menor, que se tolera mas não se estimula […].
Porém, a receptividade de que beneficia no quotidiano dos cidadãos, se lhe confere, por um lado, acrescida importância, não deixa, outrossim, de acarretar uma natural e progressiva responsabilidade, na perspectiva, igualmente merecedora de atenção, da protecção e defesa dos consumidores e das suas legítimas expectativas.
De facto, uma sociedade responsável não pode deixar igualmente de prever e considerar a definição de regras mínimas, cuja inexistência, podendo consumar situações enganosas ou atentatórias dos direitos do cidadão consumidor, permitiria, na prática, desvirtuar o próprio e intrínseco mérito da actividade publicitária. […]”.
Sucede que, para além do Código da Publicidade, ao longo dos anos tem sido aprovada legislação especial sobre publicidade, aplicável a setores de atividade específicos, considerando, entre outros fatores, a importância dos bens jurídicos tutelados (é o caso, por exemplo, do setor bancário e financeiro, do setor dos seguros, do setor dos medicamentos e dos dispositivos médicos). No que concerne especificamente ao setor da prestação de cuidados de saúde, em setembro de 2014, em virtude da experiência recolhida em processos anteriores e com o objetivo de ter uma atuação mais uniforme e preventiva relativamente à temática, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) aprovou uma recomendação de caráter genérico – a Recomendação n.º 1/2014[1] –, que incidiu sobre as práticas publicitárias efetuadas por prestadores de cuidados de saúde. Subjacente à emissão da Recomendação da ERS n.º 1/2014 esteve também o objetivo de garantir a liberdade de escolha dos utentes, para cujo exercício é fundamental que estes possuam toda a informação necessária e adaptada à respetiva capacidade de compreensão, de modo a poderem fundamentar a decisão de consumo de serviços de saúde.
Foi nesta conjuntura normativa que, no dia 14 de outubro de 2015, foi publicado, em Diário da República, o Decreto-Lei n.º 238/2015[2], que aprovou o regime jurídico das práticas de publicidade em saúde (RJPPS).
Conforme consta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 238/2015, de 14 de outubro, este regime jurídico visa “[…] acautelar os direitos e os interesses legítimos dos utentes relativos à proteção da saúde e à segurança dos atos e serviços, através de normas necessárias, adequadas e proporcionais ao imperativo constitucional de proteção da saúde e dos direitos dos consumidores”, assegurando, desta forma, o direito dos utentes à informação verdadeira, completa e transparente, imprescindível para o exercício da liberdade de escolha e para a prestação de consentimento livre e esclarecido.
As pessoas singulares são sempre potenciais consumidores de serviços de saúde, sobretudo na perspetiva dos prestadores privados, e, por isso, podem ser objeto das mais diversificadas técnicas de captação de clientela, entre as quais a publicidade. Assim, e para obviar a assimetria de informação existente entre prestador e utente, a publicidade relativa a serviços de saúde deve pautar-se por um estrito e rigoroso respeito pela transparência, veracidade, integridade e completude da mensagem transmitida, de modo a garantir que a liberdade de escolha dos potenciais utentes não seja prejudicada. Aliás, toda a informação em saúde deve ser prestada com verdade, de forma clara, adaptada à capacidade de compreensão dos destinatários, contendo toda a informação necessária à cabal decisão do (potencial) utente.
De acordo com o n.º 4 do artigo 8.º e o artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 238/2015, de 14 de outubro, compete à ERS a fiscalização, a instrução e decisão dos processos de contraordenação por violação do RJPPS, bem como a definição, por via regulamentar, de elementos importantes para aferir a legalidade da publicidade efetuada. Em cumprimento deste poder de regulamentação atribuído à ERS, em novembro de 2016, foi aprovado e publicado o Regulamento da ERS n.º 1058/2016[3], que define (i) os elementos de identificação dos intervenientes a favor de quem são efetuadas as práticas de publicidade em saúde e, bem assim, (ii) os elementos que devem constar da mensagem ou informação publicitada.
Nos termos do n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 238/2015, de 14 de outubro, o RJPPS disciplina a publicidade desenvolvida por quaisquer intervenientes, de natureza pública, privada, cooperativa ou social, sobre intervenções dirigidas (i) à proteção ou manutenção da saúde ou (ii) à prevenção e tratamento de doenças, incluindo a oferta de diagnósticos e quaisquer tratamentos ou terapias, independentemente da forma ou meios que se proponham utilizar.
Estão, contudo, excluídas do radar do RJPPS algumas matérias reguladas noutros diplomas especiais, nomeadamente, a publicidade a medicamentos e dispositivos médicos (cfr., respetivamente, Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto, e Decreto-Lei n.º 145/2009, de 17 de junho), a publicidade institucional do Estado (cfr. Lei n.º 95/2015, de 17 de agosto) e a publicidade a suplementos alimentares (cfr. Decreto-Lei n.º 136/2003, de 28 de junho).
O âmbito objetivo de aplicação do RJPPS reconduz-se à «prática de publicidade em saúde», que é definida pelo legislador como:
“Qualquer comunicação comercial, a televenda, a telepromoção, o patrocínio, a colocação de produto e a ajuda a produção, bem como a informação, ainda que sob a aparência, designadamente, de informação editorial, técnica ou científica, com o objetivo ou o efeito direito ou indireto de promover junto dos utentes:
(i) Quaisquer atos e serviços dirigidos à proteção ou manutenção da saúde ou à prevenção e tratamento de doenças com o objetivo de os comercial ou alienar;
(ii) Quaisquer ideias, princípios, iniciativas ou instituições dirigidas à proteção ou manutenção da saúde ou à prevenção e tratamento de doenças” (cfr. alínea b) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 238/2015).
Outro conceito importante para a aplicação do RJPPS é o conceito de «Interveniente», que é definido como o sujeito que beneficia da, ou participa na conceção ou difusão de uma prática de publicidade em saúde (cfr. alínea a) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 238/2015). Destarte, os intervenientes das práticas de publicidade em saúde podem ser divididos em dois grupos: (i) o primeiro grupo é composto pelas Entidades que beneficiam da conceção e da difusão da publicidade, que tanto podem ser Entidades efetivamente responsáveis por estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde (portanto, pessoas coletivas ou singulares), profissionais de saúde e, ainda, Entidades que não reúnem as condições legais para serem prestadoras de cuidados de saúde, mas que assumem indevidamente essa qualidade e, nessa medida, estão a cometer uma infração, por violação do princípio da licitude; (ii) o segundo grupo de intervenientes agrega as Entidades que contribuem para a construção, comunicação e divulgação da publicidade; logo, estão incluídos neste segundo grupo os meios de difusão em geral, as agências de publicidade e os publicitários, os gestores de páginas da internet e de redes sociais. O legislador adotou, assim, um conceito amplo de interveniente.
Por último, o RJPPS concede também um conceito de utente, que é, na verdade, o destinatário da publicidade em saúde e cujos direitos e interesses devem ser acautelados pelos intervenientes na publicidade. «Utente» não é apenas o doente que se desloca a um estabelecimento prestador de cuidados de saúde, mas qualquer pessoa singular que esteja em condições de consumir, ou vir a consumir, o serviço de saúde publicitado. Em causa está, portanto, o “público-alvo” da publicidade.
Nos termos do disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 238/2015, de 14 de outubro, as práticas de publicidade em saúde devem reger-se pelos seguintes princípios: (i) princípios da transparência, da fidedignidade e da licitude, referentes à identificação do interveniente beneficiário da publicidade (ou do anunciante, para simplificar e usar um conceito do Código da Publicidade); (ii) princípio da objetividade e (iii) princípio do rigor científico, estes dois últimos direcionados para o teor da mensagem ou informação publicitada.
O princípio da transparência determina que as práticas de publicidade em saúde devem identificar de forma verdadeira, completa e inteligível, o interveniente beneficiário da publicidade, de modo a não suscitar dúvidas sobre a natureza e idoneidade do mesmo (cfr. o n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 238/2015, de 14 de outubro, e o artigo 2.º do Regulamento da ERS n.º 1058/2016).
O interveniente a favor de quem a prática publicitária é difundida, tratando-se de prestador de cuidados de saúde, deve cumprir os requisitos de atividade e funcionamento que lhe são aplicáveis. Pelo contrário, não se tratando de entidade prestadora de cuidados de saúde, não poderá assumir indevidamente esta qualidade (cfr. princípio da licitude da informação, plasmado no n.º 3 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 238/2015, de 14 de outubro).
Acresce que a mensagem publicitária relativa a serviços de saúde não pode suscitar dúvidas, nomeadamente, sobre os atos e serviços de saúde prestados, sobre as convenções e acordos em vigor, respetiva abrangência e/ou termos de exclusão, nem sobre as habilitações dos profissionais de saúde (cfr. o princípio da fidedignidade, previsto no n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 238/2015, de 14 de outubro).
Ademais, a mensagem publicitária não pode dar azo a interpretações ambíguas ou duvidosas, nem pode conter expressões, conceitos, testemunhos ou afirmações que possam criar nos utentes expectativas potenciadoras de perigo ou potencialmente ameaçadoras para a sua integridade física ou moral, exigindo o RJPPS que a mensagem publicitária contenha todos os elementos considerados necessários ao completo esclarecimento do utente, e que procure elucidar o público-alvo sobre o ato ou serviço de saúde que está a ser divulgado. Assim, o princípio da objetividade, consagrado no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 238/2015, de 14 de outubro, e complementado pelo artigo 3.º do Regulamento n.º 1058/2016, de 24 de novembro, impõe que sejam prestadas determinadas informações ao utente, tais como:
O RJPPS impõe, ainda, o cumprimento do princípio do rigor científico da informação publicitada, determinando que, na mensagem ou informação publicitária, apenas devem ser utilizadas informações aceites pela comunidade técnica ou científica (cfr. artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 238/2015, de 14 de outubro).
Especificamente no artigo 7.º do RJPPS, são elencadas as práticas publicitárias em saúde que, de uma forma geral, são proibidas, enunciando-se aí a seguinte regra: “[s]ão proibidas as práticas de publicidade em saúde que, por qualquer razão, induzam ou sejam suscetíveis de induzir em erro o utente quanto à decisão a adotar […]” (cfr. corpo do n.º 1). Para além desta regra, o legislador estabeleceu, ainda no mesmo artigo, alguns elementos integrantes da proibição, bem como concedeu pistas para a deteção de práticas de publicidade proibidas. Todavia, os elementos expressos na norma não são taxativos, podendo a ERS recorrer a outros, quando os primeiros se mostrem insuficientes face à dimensão criativa dos casos concretos submetidos à apreciação da Reguladora.
Na redação do artigo 7.º do RJPPS, o legislador teve em consideração o disposto no Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março[4], que estabelece o regime jurídico aplicável às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores, ocorridas antes, durante ou após uma transação comercial relativa a um bem ou serviço. Assim, o elenco do n.º 1 do artigo 7.º encontra paralelismo naquelas que são as práticas comerciais desleais enganosas consagradas no Decreto-Lei n.º 57/2008. Por sua vez, o elenco do n.º 2 do artigo 7.º reconduz-se às práticas comerciais desleais agressivas, definidas pelo n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 57/2008 como “[práticas comerciais] que, devido a assédio, coação ou influência indevida, limite ou seja suscetível de limitar significativamente a liberdade de escolha ou o comportamento do consumidor em relação a um bem ou serviço e, por conseguinte, conduz ou é suscetível de conduzir o consumidor a tomar uma decisão de transação que não teria tomado de outro modo”.
O RJPPS conferiu à ERS competências de fiscalização, bem como competências para sancionar os casos de incumprimento (cfr. artigo 8.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 238/2015). Com efeito, até à aprovação do RJPPS, a ERS intervinha em matéria de publicidade por via do exercício dos respetivos poderes de supervisão, portanto, através de processos administrativos, que culminavam com a emissão de ordens, instruções ou recomendações aos prestadores de cuidados de saúde (cfr. artigo 19.º dos Estatutos da ERS, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto). No entanto, em 2015, com a entrada em vigor do RJPPS, a ERS passou a deter poderes sancionatórios para intervir em matéria de publicidade em saúde, inclusive quando o beneficiário da publicidade não é prestador de cuidados de saúde. A violação de princípios e/ou regras fixadas no RJPPS constitui, assim, contraordenação punível com sanção pecuniária (cfr. artigo 8.º, n.os 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 238/2015). No RJPPS, está ainda prevista a possibilidade da ERS aplicar aos infratores as seguintes sanções acessórias: (i) a apreensão da publicidade; (ii) a interdição temporária de exercício da atividade profissional ou publicitária; ou (iii) a privação de direito ou benefício outorgado por outras entidades reguladoras ou serviços públicos (cfr. artigo 8.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 238/2015).
Para informação adicional em matéria de publicidade em saúde, poderá ser consultada a página eletrónica da ERS, nomeadamente, a publicação da ERS subordinada ao tema “Direitos e Deveres dos Utentes dos Serviços de Saúde”, mais concretamente, o capítulo referente ao “Direito à decisão” » “Publicidade em saúde”[5].
[1] A Recomendação n.º 1/2014 está disponível para consulta em ERS - Recomendação n.º 1/2014 - Recomendação da ERS relativa a práticas publicitárias dos prestadores de cuidados de saúde.
[2] O Decreto-Lei n.º 238/2015, de 14 de outubro, está disponível para consulta no site da ERS, em ERS - Publicidade em saúde.
[3] O Regulamento da ERS 1058/2016 encontra-se disponível para consulta em ERS - Publicidade em saúde.
[4] A última alteração do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, foi operada pela Lei n.º 10/2023, de 3 de março.