Diretivas Antecipadas de Vontade e Procuradores de Cuidados de Saúde
Perspetiva Prática
Hugo Ferreira – Departamento de Intervenção Administrativa de Sancionatória da ERS
O presente texto foi concebido e redigido com dois propósitos. Por um lado, auxiliar o signatário durante a preparação da sua intervenção nas Jornadas ERS - Direitos e Deveres dos Utentes dos Serviços de Saúde, em 23 de maio de 2024, mais precisamente no painel “Diretivas Antecipadas de Vontade e Procuradores de Cuidados de Saúde”. Por outro lado, permitir que o conteúdo daquela intervenção ficasse disponível para leitura pela comunidade em geral, em particular pelos utentes dos serviços de saúde e por todo o universo de regulados da Entidade Reguladora da Saúde (ERS).
Como então se referiu no introito daquela intervenção, também neste texto não será aflorado, de forma transversal e detalhada, o regime jurídico das Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) e dos Procuradores de Cuidados de Saúde (PCS), tarefa a cargo da Colega Teresa Santos. Pelo contrário, pretende-se com o presente texto complementar a exposição da referida Colega, acrescentando-lhe uma perspetiva prática, que resulta, grosso modo, da atividade quotidiana do Departamento de Intervenção Administrativa e Sancionatória (DIAS) da ERS, em especial daquela que tem sido a sua intervenção em alguns processos, nos quais esta problemática se colocou.
Por ser assim, começaremos por fazer uma brevíssima incursão sobre o tipo de situações que têm chegado ao conhecimento do DIAS da ERS, nas quais o regime jurídico das DAV e dos PCS foi chamado à colação. Seguidamente, deter-nos-emos sobre um caso concreto que foi apreciado no âmbito de um processo de inquérito que correu termos no DIAS da ERS, no qual se colocava a questão da eficácia jurídica das DAV em situações urgência ou de perigo imediato para a vida do paciente.
Da experiência de regulação e de supervisão da ERS, em particular do seu DIAS, foi possível constatar que, na maioria das ocasiões, a problemática das DAV e dos PCS surge acoplada a uma manifestação de vontade dos utentes no sentido de recusarem, por motivos religiosos, a administração/transfusão de sangue e/ou derivados para fins terapêuticos[1].
Com efeito, o realce da motivação de tal manifestação de vontade é aqui efetuado com um objetivo pedagógico. Na verdade, nalgumas situações apreciadas pela ERS, designadamente as que foram escalpelizadas no âmbito do processo de inquérito n.º ERS/45/2021, logrou-se apurar que os respetivos profissionais de saúde, quando confrontados com tal manifestação de vontade dos utentes, ao invés de registarem nos correspetivos processos clínicos que a mesma decorria das convicções religiosas daqueles pacientes, procediam à identificação da específica religião por eles professada. Ora, os profissionais de saúde – e as entidades prestadores de cuidados de saúde ao serviço das quais aqueles se encontrem – que atuem nos termos supra descritos incumprem, desde logo, os direitos dos utentes ao tratamento de dados pessoais e à reserva da vida privada (Base 2, n.º 1, alínea a) da Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 95/2019, de 04 de setembro e artigo 5.º da Lei n.º 15/2014, de 21 de março). Desrespeitam, ademais, o princípio da necessidade de conhecer a informação (artigo 29.º, n. º1 da Lei n.º 58/2019, de 08 de agosto (Lei da Proteção de Dados Pessoais), trave-mestra do tratamento de dados pessoais sensíveis, como o são os dados de saúde, podendo assim ficar sob a alçada da Comissão Nacional de Proteção de Dados Pessoais. Mais do que isso, colocam em xeque a própria liberdade de consciência, de religião e de culto daqueles utentes (artigos 8.º alínea g) e 9.º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 16/2001, de 22 de junho.
Em síntese, a informação que a este propósito releva para que sejam assegurados cuidados de saúde adequados e em conformidade com a vontade manifestada pelo utente é de que este recusa a administração/transfusão de sangue e/ou derivados para fins terapêuticos. Adicionalmente, e numa lógica de reforço das relações de proximidade e confiança entre utente e profissional de saúde, concede-se que a motivação de tal manifestação de vontade possa ser explicitada, ainda que de modo genérico, como sucede com a formulação “motivos religiosos”. Tudo o mais, como, por exemplo, a identificação da concreta religião professada pelos utentes, revela-se manifestamente desnecessária e, nessa medida, excessiva e desproporcional. Neste sentido aponta, aliás, o “Volume III – Área Clínica” do Manual do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC), que, em matéria de registo dos constrangimentos específicos da intervenção cirúrgica em causa, se refere à obrigação de registar a “recusa de sangue por motivos religiosos”, isto é, sem individualizar a concreta religião professada pelos utentes.
Destarte, no âmbito do processo de inquérito n.º ERS/45/2021, a ERS emitiu uma instrução à entidade prestadora de cuidados ali visada, no sentido de:
“(i) Garantir, em permanência, que na prestação de cuidados de saúde são respeitados os direitos e interesses legítimos dos utentes, nomeadamente:
No dia 19 de agosto de 2021, a ERS tomou conhecimento de uma reclamação – registada no Sistema de Gestão de Reclamações da ERS (SGREC) sob o número REC/60195/2021 – através da qual uma cidadã, que se identificou como PCS de uma utente, acusava uma concreta unidade hospitalar de ter administrado sangue à referida paciente. Acrescentava, ademais, que o referido tratamento transfusional fora realizado sem conhecimento da respetiva PCS e que o mesmo contrariava a vontade manifestada pela aludida paciente em sede de DAV.
Neste seguimento, para efeitos de averiguação e apuramento cabal dos factos atrás descritos, o Conselho de Administração da ERS deliberou proceder, em 3 de dezembro de 2021, à abertura do processo de inquérito n.º ERS/71/2021[2].
Ora, no âmbito daqueles autos de inquérito, realizaram-se um conjunto de diligências instrutórias e de investigação, findas as quais foi possível apurar, desde logo, dois factos essenciais.
Em primeiro lugar, apurou-se que a utente em apreço outorgara, efetivamente, uma DAV – válida e eficaz à data da ocorrência dos factos -, através da qual:
Em segundo lugar, apurou-se que, no decurso da prestação de cuidados de saúde, e encontrando-se a utente incapaz de manifestar a sua vontade, os médicos ao serviço do prestador em apreço realizaram uma “transfusão de concentrado eritrocitário”, o que fizeram sem disso darem conhecimento à procuradora de cuidados de saúde da paciente.
Tendo em conta a referida factualidade apurada colocou-se então a questão de saber se a entidade prestadora de cuidados de saúde ali visada teria, de facto, atuado ao arrepio do disposto no regime jurídico das DAV (Lei n.º 25/2012, de 16 de julho (alterada pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto)).
Acontece que tal apreciação jurídica reclamava a análise articulada de outros factos complementares que foram igualmente apurados no âmbito daquele processo de inquérito.
Desde logo, a factualidade atinente ao (des)conhecimento que os profissionais de saúde que asseguraram a prestação de cuidados em apreço tinham sobre a existência e o teor da DAV outorgada por aquela utente. Assim, a este propósito, foi possível apurar o seguinte:
Em síntese, apurou-se que aqueles profissionais de saúde não sabiam – e não tinham, aliás, como saber – que aquela concreta utente tinha outorgado a referida DAV, assim como, por maioria de razão, desconheciam o seu específico conteúdo.
Por outro lado, para aferir do (in)cumprimento do regime jurídico das DAV por parte desta unidade hospitalar nesta situação, revelou-se necessário também considerar a factualidade atinente à específica situação clínica da utente aquando da admissão hospitalar. Neste particular, apurou-se que a paciente:
Em linhas gerais, conjugando toda a factualidade apurada, conclui-se, por um lado, que a atuação da equipa médica teve de ser rápida, decisiva e inadiável no sentido de evitar a morte e, por outro, que o tratamento necessário nesta situação, do ponto de vista das leges artis, implicava a transfusão de concentrado eritrocitário, não existindo nenhuma outra alternativa terapêutica.
Quer isto dizer que a atuação daqueles profissionais de saúde – e da entidade prestadora de cuidados de saúde ao serviço da qual os mesmos se encontravam – encontra respaldo na disciplina jurídica consagrada no Artigo 6.º, n.º 4 da Lei n.º 25/2012, de 16 de julho (alterada pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto), onde se determina o seguinte:
“Em caso de urgência ou de perigo imediato para a vida do paciente, a equipa responsável pela prestação de cuidados de saúde não tem o dever de ter em consideração as diretivas antecipadas de vontade, no caso de o acesso às mesmas poder implicar uma demora que agrave, previsivelmente, os riscos para a vida ou a saúde do outorgante” – Negrito e sublinhado nosso.
Dito isto, duas notas finais se impõem.
A primeira relativa ao disposto no preceito legal acima transcrito.
Ao contrário do que se encontra previsto noutros casos em que equipa responsável pela prestação de cuidados de saúde não tem o dever de ter em consideração as diretivas antecipadas de vontade (e previstas no artigo 6.º, n.º 2), neste caso não impende sobre os profissionais de saúde a obrigação de registar no processo clínico do utente a razão que justificou a não consideração da DAV, nem a de informar disso mesmo o procurador de cuidados de saúde. Trata-se de uma solução legislativa discutível, porquanto não se descortinam razões que justifiquem a diferença de regime entre as situações previstas no n.º 2 do artigo 6.º e a que se encontra contemplada no seu n.º 4.
A segunda nota final prende-se com a concreta atuação da ERS neste processo de inquérito, nomeadamente ao nível da supervisão (artigo 19.º dos Estatutos desta Entidade Reguladora, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto).
De facto, apesar de se ter concluído que, no caso concreto apreciado no âmbito do processo de inquérito n.º ERS/71/2021, o prestador ali visado não infringiu o regime jurídico das DAV, a verdade é que, da análise dos elementos coligidos naqueles autos, se justificou a emissão de uma instrução. É que da leitura e análise de alguns dos procedimentos que aquela entidade prestadora de cuidados de saúde tinha em vigor sobre esta matéria, verificou-se que os mesmos se revelavam omissivos em questões fundamentais reguladas no regime jurídico das DAV. Por essa razão, de molde a assegurar a conformidade daqueles procedimentos e da prática hospitalar com o disposto no regime jurídico das DAV, foi emitida uma instrução no sentido de:
“Adaptar as regras e os procedimentos internos em vigor relativos ao “Testamento Vital ou Diretiva Antecipada de Vontade (DAV)” e à “Substituição na Tomada de Decisão” em conformidade com o disposto na Lei n.º 25/2012, de 16 de julho (alterada pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto) e nas Portarias n.ºs 104/2014, de 15 de maio e 96/2014, de 05 de maio;
Garantir, em permanência, que os procedimentos e/ou as normas internas descritas na alínea anterior são do conhecimento dos seus profissionais, logrando assim a divulgação de padrões de qualidade dos cuidados, de recomendações e de boas práticas, com vista à formação e informação dos profissionais de saúde intervenientes;
Dar cumprimento imediato à presente instrução, bem como dar conhecimento à ERS, no prazo máximo de 30 dias úteis, após a notificação da presente deliberação, dos procedimentos adotados para o efeito;”.
Finalmente, importa referir que, no prazo estipulado pela ERS, o referido prestador de cuidados de saúde demonstrou junto desta Entidade Reguladora ter cumprido aquela instrução, razão pela qual se determinou o arquivamento final do processo de inquérito n.º ERS/71/2021.
[1] Atente-se, por exemplo, às deliberações finais aprovadas pelo CA da ERS no âmbito dos processos de inquérito n.ºs ERS/111/2019 e ERS/45/2021.