A DEFESA DOS DIREITOS DAS PESSOAS EM CONTEXTO DE DOENÇA AVANÇADA E FIM DE VIDA NA PRÁTICA ASSISTENCIAL
* Liseta Gomes
(ULSNE)
RESUMO
Na prática assistencial podemos considerar quatro pilares de intervenção em defesa dos direitos das pessoas em contexto de doença avançada e fim de vida: organização / formação / qualidade / avaliação de satisfação. Quando se estrutura a prestação de um serviço centrado na pessoa doente em cuidados paliativos, o foco é o próprio doente (acesso priorizado / proximidade), recursos humanos organizados em cultura de serviço, qualidade, responsabilidade e flexibilidade. Avaliação para melhoria progressiva e não para julgar.
Palavras-chave: defesa,direitos,paliativos,assistencial
A boa vontade ou a boa intenção não são o suficiente para garantir atendimento eticamente adequado em cuidados de saúde e muito menos em cuidados prestados a doentes com doença limitante de vida.
Há uma multiplicidade de problemas éticos em torno da intervenção em cuidados paliativos, desde o estabelecimento do diagnóstico / prognóstico, passando por problemas de comunicação/informação/pactos de silêncio, à terapêutica/abuso/ limitação terapêutica, aos conflitos familiares, à justiça distributiva dos cuidados prestado, ao consentimento informado, à decisão partilhada, que não podem ser tratados com imperícia ou imprudência.
* Assistente Hospitalar Graduada de Cirurgia Geral com Competência em Medicina Paliativa, Diretora do Departamento de Cuidados Paliativos e Continuados da ULSNE, Assessora da Direção Clínica
A Unidade Local de Saúde do Nordeste situa-se numa área de influência de 6,599 km², abrange uma população de 122 833 habitantes, correspondendo a uma densidade populacional de 19hab/ km², esta população tem um índice de envelhecimento superior a 200%, com um rendimento per capita de valor inferior à média nacional (Censos em Portugal de 2021 | Pordata).Para população alvo da ULSNE, a necessidade de intervenção dos serviços de saúde é a ponta do iceberg, comporta problemas socio-demográfico-geográficos que exigem uma resposta concertada da instituição de saúde com outras instituições, nomeadamente os Municípios, a Segurança Social, a RNCCI, as Misericórdias e outras Instituições de Solidariedade Social, bem como com a comunidade, para poder organizar-se uma estrutura que realmente permita servir e defender os direitos dos seus doentes com doença avançada e progressiva. Os Cuidados Paliativos surgem no Nordeste em 2009 com a Unidade de Cuidados Paliativos de Macedo de Cavaleiros e com a Unidade Domiciliária de Cuidados Paliativos do Planalto Mirandês.
Nesta altura havia normas internacionais e diretivas da OMS que reconheciam eficiência e custo-efetividade de diversas formas de organização de cuidados paliativos no alívio do sofrimento e consideravam que o desenvolvimento de modelos de cuidados paliativos integrados, nos sistemas nacionais de saúde e na continuidade de todos os níveis de cuidados, era uma responsabilidade ética de cada Estado. A Lei de Bases dos Cuidados Paliativos em 2012 vem preencher um hiato legislativo e permitir uma resposta nacional estruturada e articulada de Cuidados Paliativos. Estabelece um conceito de cuidados paliativos que, identificando a situação como “decorrente de doença incurável ou grave, em fase avançada ou progressiva”, sublinha a multidimensionalidade do sofrimento, e reconhece o binómio de sofrimento “doente-família” a necessitar de cuidado.
Este conceito reforça o imperativo da multidisciplinariedade em cuidados paliativos e consequentemente reforça a necessidade de recursos adaptados no terreno.
A ULSNE foi pioneira na adesão a projetos piloto a nível nacional que preconizavam implantar estruturas de apoio domiciliário (Unidades Domiciliárias de Cuidados Paliativos do Planalto Mirandês em 2009 - parceria da Fundação Gulbenkian com as Câmaras Municipais e Santas Casas da Misericórdia do Planalto Mirandês e ARS Norte. e mais tarde a UDCP da Terra Fria em 2015- parceria da ULSNE com a Fundação Calouste Gulbenkian e com as Câmaras Municipais de Bragança, Macedo de Cavaleiros e Vinhais) e propunham prestação de cuidados domiciliários ao doente paliativo e respetivas famílias, sempre e quando a condição de doença e a condição sociofamiliar o demandasse. Estas estruturas foram-se revelando eficazes e necessárias e quando estes projetos foram englobados pela ULSNE, tornou-se inadiável fazer chegar esta possibilidade a todos os doentes que no Nordeste tivessem indicação para esta abordagem, respeitando a universalidade na prestação de cuidados.
Em 2016 a ULSNE organizou Equipas Intra-hospitalares de Cuidados Paliativos nas três unidades hospitalares que a integravam.
Salvaguardando que, para além do número de habitantes, os recursos estruturais necessários dependem das suas características demográficas, geográficas e do desenvolvimento socioeconómico da região, a ULSNE foi progressivamente adaptando a organização do Departamento de Cuidados Paliativos às carências da região e aos meios de que dispunha no momento.
Organograma atual do DCP e C na ULSNE:
Corporiza-se assim um modelo de intervenção integrado de cuidados continuados e paliativos, quer de base comunitária quer de internamento hospitalar, com a participação e colaboração de diversos parceiros sociais e da sociedade civil, respeitando os Planos Estratégicos Nacionais para os Cuidados Paliativos
Este modelo permite não só acesso a “cuidados paliativos adequados à complexidade da situação e às necessidades da pessoa”, como “multidisciplinariedade e interdisciplinaridade” num contexto de proximidade que melhora a “qualidade de vida do doente e da sua família”, visando e permitindo “continuidade de cuidados ao longo da doença”, malgrado se registe descontinuidade no período noturno e ao fim de semana nas equipas comunitárias.
Os regulamentos internos de cada uma das tipologias de cuidados afirmam a defesa dos direitos dos doentes que lhes são referenciados, mas a validação prática deste conceito passa por formar os profissionais que trabalham na área e reciclar continuamente conteúdos, para que os comportamentos se instalem, enquanto práxis instituída e consagrada.
Os profissionais que trabalham em cuidados paliativos devem não só respeitar os
direitos das pessoas, em contexto de doença avançada e fim de vida, mas ir mais além: respeitar a pessoa e recebê-la, no seu local de serviço, com hospitalidade e compaixão, reconhecê-la na sua dignidade intrínseca, independentemente do seu estado físico/psicológico/social e espiritual, reconhecer o seu direito ao segredo e à privacidade numa atitude de haptonomia e proteção vinculativa.
É importante a formação dos profissionais em técnicas de comunicação, enquanto ferramenta basilar do processo de cuidado e de relação. Precisam de aprender a trabalhar em equipa e com equipas, pois as famílias são comunidades restritas cuja interface tem de ser compreendida, para evitar conflitos e evitar que o contacto com os profissionais de saúde seja mais um elemento de tensão, a adicionar aos seus problemas.
Todos os profissionais necessitam de se empenhar no seu próprio crescimento pessoal. Para poder dar serenidade, têm de estar serenos. Admitir a morte é a primeira premissa para acompanhar doentes em cuidados paliativos.
Foi necessário sensibilizar e fazer formação básica aos profissionais que, não trabalhando em equipas especializadas de cuidados paliativos, constituíam potenciais referenciadores e por outro lado contactavam com este grupo de doentes, em situações de agudização ou continuidade de cuidados.
A responsabilidade da equipa constrói-se com a responsabilidade individual.
Os familiares e os cuidadores informais também carecem de apoio e capacitação para conseguir dar suporte ao seu doente.
É essencial aceitar a terminalidade enquanto processo imanente ao humano: a revolta, a ansiedade, os medos, as dúvidas conduzem à exaustão.
Precisam de aprender técnicas que lhes facilitem cuidar no domicílio com maior eficácia e segurança. É fundamental que conheçam os seus direitos e deveres como acompanhantes.
Esta formação tem conteúdos de cariz ético, social, psicológico, nutricional, fisioterapia, para além do ensino de cuidados básicos de saúde.
Ao longo da doença daquele que cuidam são progressivamente solicitados para funções para as quais não estão naturalmente habilitados, o contacto com os serviços de saúde é um mundo desconhecido para a maioria das pessoas, e o que se pede a um cuidador ultrapassa quase sempre o seu entendimento. Não é fácil gerir medicação, não é fácil cuidar de um estoma, mas é mais difícil ainda receber e comunicar más notícias, é mais difícil lidar com a revolta legítima de quem sofre, é difícil ser saudável e ficar internado para acompanhar um ente querido, é difícil ajudar a tomar decisões, é difícil perceber a importância de diretivas antecipadas de vontade, é difícil perceber a importância de fazer um testamento vital quando o amor não nos deixa soltar amarras relacionais.
É difícil trabalhar mitos, só quem lida diariamente com estes doentes e seus cuidadores de forma habilitada, consegue desenrolar o novelo e tecer planos individuais de cuidados que permitam uma “prestação individualizada, humanizada, tecnicamente rigorosa, de cuidados paliativos, consentidos e devidamente informados” num entendimento de responsabilidade partilhada.
A comunidade e os parceiros sociais necessitam de revisitar o conceito de finitude humana, repensar a sua postura perante a terminalidade e a fragilidade.
A civilização médica transformou, nas últimas décadas, o sofrimento, a doença e a morte em acidentes para os quais se procura um tratamento. Para evitar que a obstinação terapêutica seja apresentada à sociedade como um processo pleno de sentido na luta contra a morte, têm de ser assumidos os limites da medicina contra um processo natural que é a morte, têm de ser aceites indicações para suspensão de tratamentos curativos e indicações para cuidados paliativos e de conforto.
A literacia em saúde pode transformar a sociedade e permitir que se construam estratégias de colaboração e de solidariedade. A educação da comunidade é um dever e uma necessidade dos serviços de saúde.
Defender a qualidade no acompanhamento, dos doentes com condição limitante de vida, é defender a inviolabilidade da vida humana e a dignidade da pessoa independentemente da sua condição, reconhecer o outro na sua diferença e respeitá-la. Este é um dever individual, de cada um dos profissionais que trabalha em serviços de saúde e um dever institucional, deve ser monitorizado de forma mais ativa sempre que a fragilidade e vulnerabilidade do doente o torna menos capaz de se defender autonomamente.
O conceito de Cuidados Paliativos evoluiu ao longo das últimas décadas, a Organização Mundial de Saúde em 1990 ao definir CP evidencia a não resposta ao tratamento como critério major para deteção do doente paliativo(**) e em 2022 alarga o leque de ação a doentes que não estariam incluídos na definição anterior mas que têm as mesmas necessidade de intervenção no controlo sintomático sem que contudo essa atitudes venham alterar o curso da doença, focando assim a atenção nas necessidades e não tanto no diagnóstico/prognóstico(***).
**. Who definition of palliative care December 2000-Palliative care is an approach that improves the quality of life of patients and their families facing the problem associated with life-threatening illness, through the prevention and relief of suffering by means of early identification and impeccable assessment and treatment of pain and other problems, physical, psychosocial and spiritual.
*** Palliative care is a crucial part of integrated, people-centred health services. Relieving serious health-related suffering, be it physical, psychological, social, or spiritual, is a global ethical responsibility. Thus, whether the cause of suffering is cardiovascular disease, cancer, major organ failure, drug-resistant tuberculosis, severe burns, end-stage chronic illness, acute trauma, extreme birth prematurity or extreme frailty of old age, palliative care may be needed and has to be available at all levels of care.
Esta aferição conceptual vem tornar mais abrangente e mais exigente a atuação em face de um doente com doença limitante de vida, sendo que apesar de existirem protocolos para tomada de decisões estas são cada vez mais complexas.
A avaliação da qualidade em cuidados paliativos radica em consensos relativamente aos vários patamares em causa, nomeadamente critérios relativos à estrutura, ao processo e a resultados, mas centra-se sobretudo na consciência afetiva positiva dos envolvidos: da pessoa doente e das pessoas para si significativas, bem como das pessoas que cuidam.
São aplicados aleatoriamente inquéritos de satisfação quer a nível de internamento quer a nível da comunidade, para averiguar junto dos utentes e junto dos cuidadores/acompanhantes, estes inquéritos são avaliados dentro das equipas para refletir sobre as críticas formuladas e melhorar as práticas, aprende-se pensando sobre o erro.
São raras as reclamações em Cuidados Paliativos. Habitualmente não focam negligência, imperícia ou má prática, mas sim erros comunicacionais. Os profissionais têm de ser conscientes da intensidade emotiva do momento que os doentes e famílias vivem, têm de perceber que uma palavra mal dita ecoa na memória vivencial do recetor e doi, independentemente da intenção do emissor, alastrando em onda para o ambiente, para o cheiro, para os outros profissionais e para a instituição que representam. Os elogios chegam quando menos se espera.” Não fizemos nada de especial…”, mas para aquela família foi muito, provavelmente permitiu-se um encontro de paz pessoal e interpessoal que é vital na despedida. Constituem um incentivo/motivação para os profissionais.
A morte de uma pessoa é sempre inédita e quase sempre inesperada para aqueles que amam o ser que parte. As evidências só existem para aquele que quer ver. É missão daqueles que cuidam de pessoas em contexto de doença avançada e fim de vida converter o corpo morrente no corpo falado para reduzir o impacto do sofrimento. É necessário reconhecer nesse corpo perecível o corpo biográfico, apesar da perda da energia vital, apesar da dependência física e apesar da perda de autonomia. É necessário que a pessoa doente se reencontre naquele corpo doente, com a sua história, com a história partilhada com as pessoas significativas e com o que o transcende e lhe dá sentido. Conseguir este trabalho é cuidado ético e deontologicamente cumprido.
Não é imperativo sofrer o tempo de morrer, temos direito a habitar o nosso tempo de morrer.
REFERÊNCIAS